Assinala-se de forma estranhamente modesta e quase envergonhada a data da morte de Václav Havel – ocorrida a 18 de dezembro de 2011. Talvez por ser escritor, o que não é valor acrescentado nesta sociedade inculta neoliberal, sempre ocupada com os seus mercados e analfabetismos crónicos e o seu desespero dos orçamentos para a cultura, que desdenham e contestam; talvez por ser dramaturgo e hoje o teatro é o último patamar das artes, quem sabe se a balaustrada de uma varanda onde alguns suicidas teimam em celebrar a vida; talvez por ser político, profissão ambígua que se tornou impopular a partir da altura em que conseguiu transformar um cabotino num líder e um líder num tirano.
Václav, no entanto, para além de intelectual – seguindo a definição de Simone de Beauvoir, um amante das palavras e das ideias-, foi ainda mais perigoso: um defensor da resistência não-violenta, com características um pouco diferentes dos sit-ins norte-americanos de Martin Luther King Jr. ou dos grupos do movimento Occupy, tal como Noam Chomsky os definiria.
Tantas coisas juntas tornam Václav Havel um homem bizarro que, todavia, foi não só um ícone de uma Revolução no seu país (a Revolução de Veludo de 1989), como o último presidente da Checoslováquia e o primeiro presidente da República Checa.
Há mais razões, periféricas, para a sua impopularidade: foi ativista da defesa dos direitos humanos, o que lhe valeu ser preso por diversas vezes e crítico do modelo comunista e da forma como se configurou no mundo checo. Além disso, escreveu The Power of the Powerless em 1978, (O Poder dos Mais Fracos), livro a vários títulos importante, sobre os mecanismos e os meios que o comunismo totalitário exerce para oprimir as sociedades e as transformar numa massa homogénea e manipulável.
Em novembro de 1989, Václav Havel foi um dos fundadores do Civic Forum (o Fórum Cívico), uma associação que defendia iniciativas democráticas (foi quando se tornou na figura principal da Revolução de Veludo).
O que mais me fascina, todavia, no registo de vida de Václav Havel, é que aprendeu a fazer cerveja. E não se fascinou pelo poder.
Nos dias que vivemos, em que passamos diante da Assembleia da nossa República e vemos um cartaz a tentar ser provocador – e que no entanto é apenas um e um espelho ridículo de quem o ergueu, querendo com aquilo dizer que não tem a menor vergonha ao recorrer a todos os meios para chegar a fins que parecem evidentemente bem perniciosos e fatais – devemos revisitar o que aprendemos sobre tirania e procurar nas figuras icónicas que se lhe opuseram algumas lições.
Todos os inimigos de peso da liberdade são muito parecidos. São populistas, forjam documentos, notícias, ideias e formatos, e exibem-nos para expor erros que por vezes não passam de boatos, opõem-se a dinâmicas sociais de proteção e de carga humanitária, opõem-se ao humanismo, às ONGs de modo geral, às instituições de solidariedade e afins. São contra rendimentos mínimos, estados providência, impostos canalizados para a solidariedade social, exigem estados policiais e não estados policiados, revestem-se de armaduras brilhantes para atraírem os povos, como certas lâmpadas que atraem os insetos à morte certa. Os comunistas no poder exigiam o registo oficial de todas as organizações solidárias, para torná-las organismos de controlo político. Os fascistas celebram a ideia de que todas as atividades humanas devem ser enquadradas de acordo com desígnio particulares, melhor dizendo, sujeitas ao jugo do estado uni-partidário e chamam-lhe corporativismo.
Não consigo gostar de extremos. Acho ridículo o cartaz do pequeno Mussolini que a nossa Democracia trouxe para casa, como um cão feroz e demente que por descuido ou piedade se trata e alimenta e que acaba a lançar-se sobre o nosso desprevenido lar, talvez matando-os e aos nossos. Gosto no entanto de pessoas que fazem cerveja. Gosto de recordar agora, talvez só por isso, a figura notável de Václav Havel – sendo um dos pouco a lembrar-se do 18 de dezembro em que partiu.
Alexandre Honrado
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